domingo, 30 de janeiro de 2011

PLEBISCITO SOBRE DROGAS

A legalização do comércio de entorpecentes volta ao debate, no mundo inteiro, diante da crescente criminalidade associada ao tráfico das drogas. Talvez sejamos obrigados, em breve, no Brasil, a perguntar à sociedade inteira, mediante votação plebiscitária, se ela aceita o livre consumo das drogas ou prefere continuar com a proibição. A guerra entre as forças do Estado e os soldados do narcotráfico, e dos grupos de criminosos entre eles, se intensifica no mundo inteiro. Milhares de pessoas morrem todos os anos, principalmente nos países pobres. E qualquer pessoa de bom senso sabe que há, por detrás do grande negócio, importantes financiadores e organizadores do sistema – os que auferem, em segurança, e longe das favelas, os lucros maiores, enquanto os pequenos matam e morrem. Além disso, as altas margens desse comércio servem para corromper policiais e outros servidores do Estado, como juízes, não só de primeira instância, como de alguns tribunais – como já ficou provado em operações da Polícia Federal.

O debate não pode ser superficial. O consumo de drogas causa imensos danos às comunidades humanas. Destrói a saúde das pessoas e exige gastos públicos consideráveis, não só no combate à produção, distribuição e consumo das drogas, como, também, na assistência médica e psicológica aos viciados. Ninguém, de bom senso, pode estimular o uso de drogas, qualquer seja o grau de sua periculosidade. Melhor seria para o mundo que não houvesse tais drogas. Há, é verdade, uma diferença entre o cigarro comum – que só causa dano ao organismo físico dos fumantes, ativos e passivos – e a cocaína e seu derivado residual, o craque – que enlouquece o consumidor e o incita a crimes tenebrosos, muitos deles cometidos no interior das famílias. Sendo assim, não é fácil defender a plena liberdade de consumo.

Pelo outro lado, há uma visão radical da liberdade, que assegura a qualquer um o direito de dispor de seu próprio corpo como quiser. O uso da droga, para esses defensores da total autonomia pessoal, deve ser permitido – desde que seus atos não venham a prejudicar outras pessoas. Nesse caso caberia ao Estado controlar o consumo, em lugares especiais, mantendo o drogado sob custódia enquanto durassem os efeitos do narcótico. Será um gasto considerável, mas, provavelmente, menor do que o exigido no combate inútil aos traficantes e consumidores. Outro efeito social importante será o saneamento das favelas. Com a droga sendo comercializada nas farmácias, mediante controle, os morros deixarão de ser entrepostos de distribuição dos narcóticos. O Estado voltará a ocupá-los, a corrupção deixará de atingir os corpos de repressão, e o que restar do comércio clandestino será mais facilmente combatido.

A exacerbação do consumo de drogas – que é historicamente um ritual místico - é hoje uma das respostas da infelicidade, da frustração, do desencanto da sociedade contemporânea. É uma forma radical de evasão, que pode conduzir à fuga absoluta, à morte. Não é uma desgraça apenas da pobreza, mas de todas as camadas sociais. Sua causa mais profunda é o sentimento de alienação que a sociedade industrial contemporânea impõe, conforme todos os estudos sobre o tema.

Alguma coisa deve ser feita, e já.

GETÚLIO E A REVOLUÇÃO DE 30

A Revolução de 3 de outubro de 1930 é um dos movimentos políticos brasileiros menos conhecidos e mesmo assim, dos mais criticados. Os conservadores, que detestavam Getúlio Vargas, e pisam ainda a sua memória, relacionam-na com o Estado Novo, mas é necessário entender as circunstâncias daquele tempo. Getúlio foi Ditador, e aceitava o título. Ele não pediu a ninguém que empregasse eufemismos durante o seu primeiro período de governo, que vai de 10 de novembro de 1930, quando recebe oficialmente o governo da Junta Militar, à promulgação da Constituição de 16 de julho de 1934. Transformada a Constituinte em Câmara dos Deputados, ele foi eleito de forma indireta, como previa a Carta, para cumprir o mandato até as eleições marcadas para 1938. Entre 10 de novembro de 1937 e 29 de outubro de 45, com o Estado Novo, preferiu ser chamado “Chefe da Nação”.

A Revolução de 30 amadurecera durante a década anterior, em que, pela primeira vez no Brasil, a questão social passou a ser vista como um problema nacional. Os trabalhadores do Rio e de São Paulo, com a participação dos imigrantes anarco-sindicalistas, intensificaram as suas reivindicações, iniciadas nos últimos anos do século 19 – que foram os primeiros da República. O inconformismo dos tenentes e de ponderáveis forças políticas civis, já nos meses finais de 1929, acabou confluindo na idéia de nova agremiação política, a partir de entendimentos regionais, com a Aliança Liberal. É de se lembrar que os jovens tenentes se sublevaram em 22, em Copacabana e, em 24, na rebelião de São Paulo. Seus remanescentes constituíram a Coluna Prestes e – com algumas exceções – se somaram a Vargas no movimento armado de outubro.

É corrente a versão de que a Revolução de 30 surgira do rompimento de um compromisso político entre São Paulo e Minas. O mineiro Arthur Bernardes, como presidente no quatriênio 1922-1926, apoiara a candidatura de Washington Luis, então governador de São Paulo, à sua sucessão; em troca, caberia a Washington promover a candidatura de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, governador de Minas, à presidência, nas eleições de 1930. Conservador convicto, ele decidiu lançar, como seu sucessor, Júlio Prestes, então governador de São Paulo. As oligarquias paulistas não queriam alternar o poder com os mineiros. Podemos dizer que esse fator político pode ter sido o estopim do movimento – mas as razões maiores estavam no envelhecimento da República oligárquica e na emersão das classes médias urbanas. O grande lema de Washington Luis, representante das oligarquias rurais o identificava: “a questão social é um caso de polícia”. E foi com a repressão policial contra os trabalhadores que garantiu os privilégios das oligarquias. Desde o acordo de Taubaté, os Estados formavam estoques de café, a fim de manter os preços. Em razão disso os fazendeiros aumentavam a produção, enquanto os governos se endividavam, com dinheiro de fora e os investimentos estatais minguavam, enquanto a situação social se agravava. Com dinheiro fácil, os aristocratas paulistas - como lembrou Yan de Almeida Prado -, viajavam sempre para Paris, a fim de escapar da algaravia dos imigrantes. Os bancos estrangeiros propuseram ao presidente Arthur Bernardes que pagasse a dívida externa com a privatização e desnacionalização do Banco do Brasil e da Estrada de Ferro Central do Brasil. O mineiro, que era nacionalista, respondeu asperamente que não.

A plataforma de Vargas, como candidato da oposição, lida em janeiro de 30, na Esplanada do Castelo, no Rio, ousava atacar os poderosos e destacava a necessidade de enfrentar-se a questão social e de tornar menos cruel a vida dos trabalhadores urbanos e rurais. Até então – disse à multidão que o ouvia - o Estado favorecera os ricos, e era chegada a hora de cuidar dos pobres. Mais ainda: colocava o desenvolvimento econômico como o único caminho para a soberania nacional e falava em aço, em petróleo, em mineração, em energia elétrica, em indústria química.

A Revolução de 30, mesmo com o autoritarismo, que era a ideologia da década (tanto à esquerda, quanto à direita), trouxe o Brasil para o século 20, e abriu caminho ao desenvolvimento posterior. Há, entre o País daqueles anos e o de hoje, notável coincidência. O Brasil, já em 1934, foi o primeiro país da América – bem antes dos EUA - a sair da crise de 29, da mesma maneira que foi o primeiro a superar a crise do ano passado.

sábado, 29 de janeiro de 2011

O PARLAMENTO, O JOGO E O CRIME

Quase todos os dias, o homem comum, dotado de senso comum, com os sentimentos usuais de quem trabalha para viver e cumprir seus deveres para com a família, a sociedade e o país, se sente atônito com algumas instituições do Estado. O parlamento legisla de costas para a realidade nacional, e sensível aos lobistas - pelas razões que podemos suspeitar. Suas excelências, em sua maioria, são ágeis em defender os próprios privilégios e os privilégios dos que com elas se acumpliciam. A consciência moral da cidadania não havia ainda assimilado a lei de reforma eleitoral, que abriu caminho às doações secretas para as campanhas políticas, e outra decisão espantosa foi tomada. Com amplíssima margem, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados decidiu pela reabertura dos mal chamados “bingos”, a serem explorados pela iniciativa privada. O primeiro argumento dos defensores da medida é o de que o jogo faz parte da natureza humana. Estamos sempre jogando. Perfeito. Os que jogam – é esse o raciocínio – devem ser punidos quando perdem e felicitados quando ganham. A liberdade individual deve ser respeitada. Quem quiser jogar, que jogue.


Alguns sabem controlar seu impulso, não arriscando mais do que o valor de uma aposta na loteria. Mas há quem vai além. São os que perdem o salário, o patrimônio da família, o dinheiro dos remédios. Em alguns casos, a fim de atender ao impulso, há quem cometa estelionato e peculato. Não importa o sofrimento que impuser aos outros, nem os prejuízos que provocar. Outro argumento dos defensores da liberação é o do desemprego. Os bingos empregarão milhares de pessoas hoje desocupadas. Se assim é, nada contra. Milhares de brasileiros trabalham nos postos da Caixa Econômica Federal, recolhendo apostas das loterias oficiais. A Caixa Econômica poderia, com sua grande experiência, operar os salões de bingo, mediante pessoal treinado, com a automação dos pagamentos e o registro eletrônico – tal como ocorre com os jogos que administra. Os lucros da operação seriam divididos, de acordo com a lei, para o benefício de instituições culturais e de assistência social.


No caso dos bingos, há outras coisas em que pensar. Os empresários dos bingos constituem poderoso grupo de pressão sobre o Estado e de suborno das autoridades. Não há melhor negócio do que bancar o jogo, sobretudo quando não há a hipótese de prejuízo. As máquinas caça-níqueis são facilmente programáveis para perder no momento certo e na quantia conveniente. O próprio bingo clássico é objeto de manipulações, de acordo com alguns policiais. Além disso – e esse é o perigo maior – a atividade é atraente para o crime organizado. Há alguns anos, em um hotel de São Paulo, notei que havia um grupo de indivíduos que, pelo idioma com que se comunicavam, identifiquei como corsos. Pensei que se tratasse de homens de negócio e isso despertou a curiosidade: em que os corsos teriam interesse no Brasil? O porteiro explicou que aqueles homens “mexiam” com bingos. Aquele era o “seu negócio”.


O jogo “lava” dinheiro. Pode legalizar os lucros obtidos no tráfico de drogas, na corrupção, no roubo de cargas, no contrabando, na contrafacção de produtos industriais, na prostituição. O Brasil já se encontra infestado de mafiosos de todos os continentes. A “globalização” trouxe, entre outros malefícios, a presença desses bandos que se dedicam à exploração do turismo sexual, ao tráfico de mulheres brasileiras para a Europa. Além de atuar nas grandes cidades, infestam o litoral.


Não houve uma ampla discussão no país sobre o problema do jogo. Não haja ilusões: se os bingos forem permitidos, como prevê o projeto de lei, em breve haverá cassinos sob o comando de gangsters, como é da tradição do negócio, com todos os resultados conhecidos.


Espera-se que o plenário corrija a decisão. Se isso não ocorrer, que o Senado exerça – pelo menos nisso – seu papel de câmara moderadora, e, se não rejeitá-la, altere a lei. Outra saída será o veto presidencial, que será possível se o presidente pensar nas conseqüências da permissão. Mas, se a sociedade não pode passar sem o bingo, que o poder público, mediante a Caixa Econômica Federal, com sua experiência e recursos, opere o sistema. Se há jogadores compulsivos que levam os seus ao desespero, os lucros do jogo serão destinados a retirar milhares de outras famílias da situação de miséria em que se encontram.